Masaharu Taniguchi
Como expliquei, chamamos de Deus à Ideia Suprema que desde o princípio está alojada no âmago do ser humano e da nação. Podemos, pois, dizer que temos visão filosófica de Deus. Falando em visão filosófica de Deus, pode parecer que Ele seja um ser racional e frio, sem sentimentos afetuosos, o que não é verdade. Embora seja, do ponto de vista filosófico, um Ser racional, Deus é também extremamente afetuoso. Podemos compreender isso efetuando uma auto-análise e refletindo sobre nós mesmos. Nós, filhos de Deus, somos seres dotados de amor e sentimento de caridade, o que significa que Deus é a Fonte desses atributos. Por outro lado, somos seres racionais que buscam o autodesenvolvimento em conformidade com as leis do Universo, analisam objetivamente a si próprios e regulam a própria conduta; nesse sentido, manifestamos o lado racional de Deus-Fonte.
Entretanto, quando se enfatiza demais o aspecto "Humanizado" de Deus, ocorre a predominância de vícios oriundos das velhas religiões, e então a doutrina adquire caráter supersticioso ou se torna um meio de "autoconsolo" para pessoas fracas e sentimentais, e acaba sendo preterida pela classe intelectual. É preciso que os religiosos preguem a Verdade em conformidade com a época. Se nos referirmos a Deus como um Ser racional, do ponto de vista filosófico, a doutrina será acolhida também pela classe intelectual. Em A Verdade da Vida, falo de Deus sob esse prisma. Deus onipresente no Universo como ideia primordial é Deus que Se manifesta como lei ou principio fundamental.
A seita religiosa Tenri-kyo enfatiza a lei divina, afirma que Deus é lei. Daí provém a denominação Tenri-kyo (Ten = Céu; ri = lei, princípio; kyo = doutrina). O cristianismo se refere a essa lei usando o termo "justiça". Em inglês, "justiça" se diz também righteousness (retidão, probidade). Deus é, pois, a Lei justa e universal que jamais pode ser distorcida. Entretanto, Ele é, ao mesmo tempo, justiça e amor. Quando se procura explicar a natureza de Deus por meio de palavras no plano fenomênico, costuma-se recorrer a conceituações abstratas, usando-se termos como justiça e amor; mas é preciso não se aferrar demais a um ou outro atributo, pois, com tal postura, acaba-se criando ideias distorcida acerca de Deus, julgando-O um ser justo mas implacável ou um ser extremamente condescendente que age à mercê do amor. Na verdade, Deus é um ser que traz em si, numa fusão harmoniosa, a justiça e o amor.
Se considerarmos Deus unicamente como lei e enfatizarmos somente a implacabilidade de Sua justiça, teremos de admitir que "para redimir cinquenta pecados, a pessoa terá de cumprir, necessariamente, cinquenta penitências", ou seja, que a pessoa estará irremediavelmente tolhida pela lei da causalidade (lei do carma). A Tenri-kyo fala muito sobre carma e prega que, para eliminá-lo, os adeptos precisam dedicar-se inteiramente ao ensinamento, inclusive oferecendo todos os bens à seita. Assim ensina porque ela enfatiza um "Deus justo e implacável" que não perdoa os cinquenta pecados se não forem redimidos com cinquenta penitências. Entretanto, Deus é Amor e com Sua misericórdia pode desviar a força implacável do carma. Por ser bondoso e generoso, se uma pessoa Lhe pedir "Senhor, não tenho forças para cumprir cinquenta penitências. Por favor, permita-me cumprir apenas dez penitências", Ele atenderá. Poderá, ainda, perdoar-lhe todos os erros e acolhê-la no sublime mundo divino onde não existe pecado de espécie alguma.
Como vimos, Deus é justiça rigorosa, mas, ao mesmo tempo, é amor que transige. Quando nos referimos a Deus como justiça ou razão, baseamo-nos num ponto de vista filosófico, racional. Entretanto, quando Se manifesta com amor, Ele tem infinita capacidade de condescender e, com Sua misericórdia, anula todo e qualquer pecado, do mesmo modo que a divindade budista Kanzeon Bosatsu (Avalokitésvara) se manifesta sob 33 formas diferentes, conforme as circunstâncias, e salva as pessoas. É com base nesta verdade que o budismo Shin prega que até mesmo indivíduos em estado de ilusão, cobertos de pecados, destituídos de piedade e misericórdia e atolados em goun (*Nota: termo budista que significa cinco vicissitudes: ocorrência de desgraças e pragas; propagação de ideias e ideologias perniciosas; exacerbação das paixões mundanais; degradação da natureza humana), serão salvos se entoarem o nenbutsu (oração budista, invocando a misericórdia de Buda-Amida).
Reverenciar Deus como Razão ou como Amor depende da mente das pessoas. O que importa é saber que, embora a razão e o amor pareçam contraditórios ou conflitantes, "flui" entre eles uma harmonia e, através deles, Deus – que não tem forma definida e pode manifestar-Se sob infinitos aspectos – atua livremente. Para expressar esse fato, uso as palavras Nagaruru fudo, que significa "flexibilidade dentro da imobilidade". Trata-se de um furyu-mongi, ou seja, uma Verdade que não se pode transmitir claramente por meio de palavras faladas ou escritas e que só pode ser compreendida por meio de transmissão direta de mente para mente. Portanto, não devemos interpretar o termo fudo simplesmente como imobilidade. Não devemos, também, fazer cogitações ou estabelecer conceitos fixos acerca de Deus baseando-nos apenas na lógica da inteligência humana. Deus, sendo um ente infinitamente livre, manifesta em Si tanto a justiça (razão) como o amor. Ele aparece sob as mais variadas formas, dependendo das pessoas. Por isso, ás vezes usamos o termo Oge-shin, que significa: "Deus, Ideia Suprema do Universo, que Se manifesta de diferentes formas conforme as pessoas". Devido a essa característica de Deus, surgiram muitas vertentes religiosas. Pode-se dizer que as divergências entre as várias doutrinas religiosas se devem a diferentes proporções de justiça (razão) e Amor de Deus consideradas por elas.
Para salvar as pessoas, Deus manifesta-Se sob diferentes aspectos, de acordo com a época e com o povo, de modo adequado à cultura, civilização, costumes e tradições vigentes. Assim foi no passado e assim é na era atual. Para o povo judeu que viveu há dois mil anos, Deus apareceu como Jesus Cristo porque aquele povo precisava do ensinamento de Cristo. Na Índia, há dois mil e seiscentos anos, Deus manifestou-se sob a forma de Sakyamuni (Buda), porque ao povo daquele país o budismo era a doutrina mais adequada. Ao longo dos tempos, surgiram as mais variadas doutrinas e seitas religiosas, e os ensinamentos dos fundadores diferem entre si. Cada ensinamento é uma ação de Deus manifestada conforme a época, o povo e o lugar. Portanto, uma seita não deve repelir a outra, considerando-a herética. A Seicho-No-Ie, considerando as diversas religiões aparentemente antagônicas como diferentes formas de manifestação da obra de Deus, conseguiu descobrir a identidade de todas elas no que se refere à essência dos seus ensinamentos.
Deus é, ao mesmo tempo, amor e justiça. Por isso, tanto pode surgir como uma imagem misericordiosa como a de Kazeon Bosatsu, como pode aparecer com uma imagem severa que traz consigo "corda para atar" e "arma para ferir", semelhante à divindade Fudo-myô do budismo. Assim, mesmo uma sogra aparentemente malvada é, na verdade, uma manifestação de Buda e desempenha a ação de "arma cortante como a de Fudo-myô". Deus se manifesta sob diferentes aspectos, dependendo da circunstância. Nem sempre Ele Se manifesta com um aspecto severo como o de Fudo-myô que traz na mão uma arma cortante. Não devemos confundir a manifestação de Deus com a Imagem Verdadeira de Deus. Até mesmo no cristianismo, que prega o amor e o perdão de Deus, existe o episódio em que Jesus Cristo, ao chegar ao Templo de Jerusalém e deparar com comerciantes vendendo suas mercadorias e cambistas sentados às suas barracas, enfureceu-se pelo fato de estarem maculando o templo e os expulsou brandindo um chicote. Naquele momento, Deus manifestou-Se através de Jesus Cristo, usando "arma cortante" (repreensão severa). Deus é bondoso e severo, é amor e justiça, e Se manifesta sob um ou outro aspecto, dependendo da circunstância.
Porém, qualquer que seja a forma com que Deus Se manifesta, a Imagem Verdadeira dEle é o Ser Supremo que não sofre nenhuma restrição de tempo e espaço, nem é um ser transitório que desaparece, ressurge e novamente desaparece. Deus é, na verdade, a Ideia Suprema que transcende o fluxo do tempo e as manifestações no espaço. Mas, para conduzir à salvação, Ele surge neste mundo sujeito às restrições de tempo e espaço, assumindo o aspecto adequado a cada situação.
Deus-Fonte, origem de tudo, é o poder supremo que sustenta tudo quanto existe de verdade. Portanto, podemos chamá-lo de Criador. Mas não significa que Ele tenha criado este imperfeito mundo material visível aos nossos olhos. Ele é o Criador que gerou o mundo da Ideia Suprema. No capítulo 2 do Gênesis, consta que surgiu uma neblina da superfície da terra e a cobriu inteiramente, o que significa que uma névoa cobriu o mundo da Ideia, isto é, a criação original. A névoa da ilusão cobriu a Imagem Verdadeira e assim surgiu este mundo fenomênico. E nós, vivendo neste mundo, com muito esforço vislumbramos a Imagem Verdadeira através da névoa da ilusão. Assim, em nosso contato com os outros, só conseguimos enxergar muito vagamente a natureza búdica deles, ou apenas imaginar neles a natureza divina. São muitos os que parecem egoístas, imperfeitos ou tolos, havendo também os que parecem cruéis, desonestos, malignos ou libertinos. Referindo-se a essas pessoas, o eminente mestre budista Shinran disse: "Pobres mortais atormentados por ilusões e paixões mundanais".
A minha filosofia consiste na afirmação de que tais aspectos imperfeitos são originalmente inexistentes. A nossa perfeição original não pode ser apreendida pelos cinco sentidos, pois os sentidos físicos são efêmeros e só conseguem conhecer coisas fenomênicas que, sendo, também transitórias, estão em constante mutação e, no momento em que pensamos tê-las apreendido, já estão alteradas. Nossa mente consegue ter uma rápida visão do mundo da Existência Verdadeira, o homem verdadeiro e a Ideia Suprema somente por meio da intuição que surge num lampejo por entre as "névoas" que embaçam a lente mental, ou seja, pelas frestas das percepções e sensações físicas desencadeadas pelo cinco sentidos.
Por meio dessa intuição compreendemos que o ser humano é filho de Deus e, portanto, um com a infinita Vida de Deus; que este mundo, em sua essência, é reino de Deus (ou, em linguagem do budismo, "terra búdica"), e que, por trás do imperfeito mundo fenomênico, existe um mundo perfeito. Compreendemos que esse mundo perfeito é o reino de Deus (no budismo, rengezo sekai = paraíso búdico, terra pura) e que todos os seus habitantes são filhos de Deus. Através do materialismo, que vê como aspecto real as situações manifestadas no mundo material, não é possível compreender a Imagem Verdadeira do ser humano nem do Universo.
Do livro: "A Verdade da Vida, vol. 35", pp. 130-136
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