- Masaharu Taniguchi -
Também no tocante à religião, não devemos nos apegar à forma.
O "despertar" não é visível aos olhos físicos. Não é possível captar com os olhos físicos a Verdade, o que existe realmente. Por isso, não podemos explicá-la com palavras que exprimem coisas visíveis. Mesmo que tenhamos apreendido "o que existe de verdade" – a Imagem Verdadeira –, não é possível expressá-lo com a linguagem de uso cotidiano, com que exprimimos as coisas do mundo fenomênico. A palavra, por ser vibração emanada a Deus, tem o poder de expressar a Verdade. Porém, por meio do vocabulário de uso comum, isso é muito difícil. Entretanto, pelas vibrações das palavras do orador é possível aos ouvintes alcançar o despertar espiritual. Como as vibrações variam conforme o orador, as mesmas palavras podem causar diferentes impressões ao ouvinte. Isso significa que o que importa é a essência, e não a forma.
Ouve outrora um mestre zen budista chamado Gutei. Sempre que alguém em busca do aprimoramento espiritual lhe pedia para explicar o que era o despertar espiritual, ele levantava o dedo polegar, como uma forma de representá-la. Então, um monge noviço passou a fazer o mesmo gesto. Porém, embora o gesto de ambos fosse aparentemente o mesmo, havia uma enorme diferença na essência, pois, enquanto que o gesto do mestre Gutei representava o despertar espiritual, o do noviço não passava de imitação da forma. O despertar espiritual é invisível, é algo que transcende a forma, e para expressá-lo recorre-se a diversos meios de expressão. Em alguns casos, o orientador levanta o um dedo ou até mesmo bate na pessoa com um bastão; em outros, recorre a diversas formas de expressão verbal. Mas quando passa a haver apego à forma, esta deixa de exprimir a Vida. nesse caso, ainda que se use as mesmas expressões, a essência diferirá tanto quanto diferiam a essência dos gestos aparentemente iguais do mestre e do noviço, no exemplo citado.
Quando se fica preso a velhas formas, fatalmente ocorre esvaziamento do conteúdo. Isto se aplica também à religião. Por exemplo, pregando-se o ensinamento de Buda sempre com as mesmas formas de expressão, a doutrina tenderá cada vez mais ao formalismo e deixará de transmitir a Vida em si. Assim, a religião se torna formal. Ao longo da história da humanidade surgiram muitas seitas religiosas, e cada qual em sua época contribuiu para a salvação dos povos. Porém, com o passar do tempo, foram se esvaziando, "perderam a Vida", e acabaram mantendo apenas a "forma", ou seja, os rituais. Devido a isso, chegou a surgir a ideia errônea de que a religião se resume em rituais.
No tocante ao budismo, desde o surgimento de Sakyamuni até os dias atuais, apareceram ao longo dos anos muitos grandes mestres, tais como Kobo, Dogen, Shinran, Nichiren, que fundaram suas próprias seitas, e cada um deles alcançou o despertar espiritual e expressou-o de forma mais adequada para si próprio e para a época e lugar em que viveu. Porém, com o passar do tempo, muitas das antigas religiões foram se tornando cada vez mais formais, até acabarem perdendo a essência e ficarem apenas com a forma externa (rituais). Quando as velhas religiões se tornam formais e perdem o poder de salvar o povo, surgem outras novas, como comprova a própria história das religiões. É natural que, quando uma religião até então dominante acaba se tornando mera forma sem conteúdo, surjam novas religiões mais adequadas para a época, com o poder de dar novo impulso à Vida. A forma como expressamos o despertar espiritual não é o despertar espiritual em si. Embora não seja possível palpar ou dar forma ao despertar espiritual, que é a manifestação da Vida em constante movimento, valemo-nos de expedientes e recorremos a formas (palavras) para expressá-lo. Ao tentarmos expressar o despertar espiritual sob uma forma concreta, damos margem ao surgimento de apego à forma. Por isso, se julgarmos que a forma de expressão do despertar espiritual seja a religião, cometeremos erros. Conseguimos apreender a Vida nas formas através das quais ela se expressa. Mas o despertar espiritual, em si, transcende as formas de expressão.
Para continuar exprimindo a Vida através dos tempo, é preciso criar constantemente novas formas e, ao mesmo tempo, romper com as formas já ultrapassadas. Religião que não procura introduzir modificações, acaba "se esvaziando", tornando-se religião formal, e cedo ou tarde é suplantada por outras religiões mais dinâmicas. Desde os tempos remotos, têm sido frequentes o surgimento de novas seitas e a ocorrência de reformas religiosas, o que comprova a necessidade de constantes inovações. Somente as religiões que evoluem incessantemente, introduzindo reformas necessárias, conseguem permanecer eternamente vigorosas. Mesmo que se pratique uma determinada forma de pregar o ensinamento, considerada a melhor para uma determinada época, não se deve continuar apegado indefinidamente a ela. Se não foram introduzidas modificações adequadas, com o passar do tempo essa forma de pregar acaba se tornando uma teoria vazia; uma forma sem conteúdo, e perde o poder de transmitir a Vida.
No passado, o grande mestre Shinran, fundador da seita budista Jodo-Shinshu, afirmou que "para se alcançar a salvação, basta invocar Buda dizendo namu-amida-butsu". Isso porque para ele, na época e no lugar em que viveu, aquela era a melhor forma de expressar a Verdade que alcançara com o despertar espiritual. Para ele, aquela afirmação tinha suma importância, pois dizer namu-amida-butsu significava expressar a fé absoluta em Buda e a confiança total em sua infinita misericórdia. Porém com o passar do tempo, muitas pessoas esqueceram o verdadeiro sentido de entoar namu-amida-butsu e passaram a pensar que "dizendo simplesmente namu-amida-butsu, consegue-se alcança a salvação, independente de atos e de pensamentos". Isto é, passaram a se apegar à forma, distanciando-se por completo, da essência do ensinamento de Shinran.
Conforme expliquei nos capítulos anteriores, o monge Gutei levanta um dedo para representar a Verdade, e seu aprendiz imitava esse gesto; embora o gesto fosse igual, o "conteúdo" diferia completamente. Por isso, o monge Gutei tomou medida drástica cortando o dedo desse aprendiz. Procedeu de modo igualmente drástico o grande mestre Nichiren (Fundador da seita Nichiren, que surgiu depois de Shinran), quando afirmou categoricamente: "Se entoarem o nembutsu (namu-amida-butsu), cairão no inferno da tortura incessante". Com esta afirmação, o grande Nichiren pretendeu "cortar" a ilusão das pessoas, do mesmo modo que o monge Gutei cortou o dedo do aprendiz (que lhe imitava apenas o gesto). Nichiren não considerava o nenbutsu como um mal; mas, censurou energeticamente a sua entoação formal, visando vivificar seu significado. A partir do momento em que as pessoas passaram a pensar "entoando o namu-amida-butsu, seremos salvos, qualquer que seja a nossa atitude mental", e começaram a praticar a mais variadas formas de iniquidades, o ato de entoar o nenbutsu tornou-se meramente formal e perdeu o poder de purificar o ser humano. O sublime significado do nenbutsu está em fazer com que a pessoa se deixe envolver completamente pela força purificadora de Amida-Buda, e deixe de sentir a necessidade de buscar a salvação por outros meios.
Certa ocasião, o jornal Chugai-Nippo efetuou uma estatística concernente aos criminosos que cumpriram pena no presídio de Osaka, e constatou que a maioria deles eram adeptos da Shinshu. Porém, não sepode atribuir a culpa ao ensinamento do mestre Shinran, fundador da seita. O ensinamento do mestre Shinran é muito bom, mas, com o decorrer do tempo, muitos adeptos passaram a entoar o namu-amida-butsu apenas formalmente, esquecendo a essência do ensinamento do mestre, contida nessa sutra. Acreditando que basta dizer namu-amida-butsu para alcançar a salvação, tais adeptos não procuram levar uma vida correta. O fato constatado na estatística efetuada no presídio de Osaka é uma das consequências dessa tendência. Quando o povo passou a entoar o namu-amida-butsu apenas formalmente, tornou-se necessário o surgimento de alguém que lhe abrisse os olhos. Esse alguém foi o grande mestre Nichiren. Ele foi a pessoa enviada pelo Supremo Salvador do Universo, para conduzir o povo japonês à salvação, atendendo às necessidades daquela época.
O mestre Nichiren afirmou: "O nenbutsu conduz ao inferno do sofrimento eterno; o zen é um ato do demônio; o budismo Shingon arruína o país; e os adeptos do budismo Risshu são traidores da nação". Ele advertiu com energia que aqueles que vivem entoando o nenbutsu de maneira meramente formal, acabam caindo no inferno. Nichiren não era contra a prática do nenbutsu, em si. O que ele condenava era a conduta das pessoas que se apegavam à entoação formal do nenbutsu e, por assim dizer, "suprimiam" o seu conteúdo vital (ou seja, se esqueciam da essência do ensinamento). A essas pessoas, ele advertia que "acabariam caindo no inferno, se continuassem procedendo de tal forma". Certamente, os adeptos da Shinshu, que constituíam a maioria dos criminosos presos na penitenciária de Osaka, segundo a estatística efetuada pelo jornal Chugai-Nippo, eram pessoas que entoavam o nenbutsu em vão, esquecendo a essência do ensinamento de Shinran.
Este é um exemplo do efeito nocivo do apego à forma, no que concerne à religião. O apego à forma implica em negligenciar a Vida (a essência). Assim, os sucessivos surgimentos de novas religiões são resultados do esforço para romper velhas formas e manifestar a Vida (a essência) com vigor renovado.
Do livro "A Verdade da Vida, vol. 33", pp. 61-67
2 comentários:
Foi dito: "O apego à forma implica em negligenciar a Vida (a essência). Assim, os sucessivos surgimentos de novas religiões são resultados do esforço para romper velhas formas e manifestar a Vida (a essência) com vigor renovado." E também: "Conseguimos apreender a Vida nas formas através das quais ela se expressa. Mas o despertar espiritual, em si, transcende as formas de expressão." De fato as formas de expressão estão na Representação e não constituem o despertar espiritual em si. Mas há algo que está manifesto na Representação e que é em si a essência, o algo a ser percebido, e que no momento em que é percebido constitui o próprio despertar espiritual. Este algo é a Vida [de Deus]! A expressão "Vida de Deus" é limitada porque Deus é Aquele que Vive e a Vida expressa o que Ele É. Assim, Deus é Vida. Ele é o único ser vivente! Esse é o limite em que as palavras podem chegar; é o ponto em que a lógica e a evidência dos sentidos humanos foram ambos transcendidos, mas é a Realidade! Nesse ponto as palavras e a lógica humanas já não podem expressar a Realidade. Mas Aquilo que é Real permanece e apenas a percepção pode apreender a Realidade. Essa percepção não advém da mente das pessoas, ela própria advém do Ser Real. Ela advém dAquele que Vive, mas que não está na Representação. Por isso, diante da percepção de Simão sobre sua REAL IDENTIDADE de Filho de Deus, Jesus disse: Simão, filho de Jonas, feliz és tu, porque isso Quem te revelou não foi carne e sangue, mas meu Pai, que está no céu". Assim, o despertar espiritual consiste em percebermos Quem percebe em nós! Nesse momento percebemos o mesmo que percebeu aquele discípulo que disse: "Vivo, mas já não sou eu Quem vive, é Cristo Quem vive me mim". Percebemos também o mesmo que percebeu aquele que disse: "Nós vivemos, nos movemos e temos nossa existência [nossa Vida] em Deus". Essas são percepções advindas dAquele que Vive [dAquele que na Representação Vive em nós, mas que nos faz perceber que na Realidade nós e quem vivemos nEle]. É o percebo, desfruto e compartilho. Namastê.
Gratidão, Silvano, por esse belo comentário sobre a essência e a forma.
O despertar espiritual está na essência, e não na forma que o expressa.
E o que está na forma, por não pertencer à dimensão da essência, não pode perceber a essência.
Isso significa que o que percebe a essência é a própria essência.
Daí porque Masaharu Taniguchi explica que "a forma como expressamos o despertar espiritual não é o despertar espiritual".
A meu ver, o tema principal destas postagens do Masaharu Taniguchi é o DESAPEGO.
O desapego às formas deve ocorrer a fim de que consigamos captar a essência.
É importante não se apegar às diversas formas de expressões utilizadas para mostrar a Verdade. Esse também é o princípio do dharma, em que a pessoa age com renúncia aos frutos da ação, ou seja, com desapego à própria ação e a qualquer tipo de expressão ou forma que poderia advir de tal ação.
Enfim, desapegando-se das formas não-essenciais, o que sobra é o essencial. E o essencial é sem forma e cheio de potencialidade (possibilidades infinitas). O essencial percebe o essencial. O não essencial percebe (alcança) apenas o que é não essencial.
Grato por seu comentário.
Namastê!
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