Marcelo Ferrari
A maior curiosidade de Leela era atravessar aquele buraco no céu. Ela passava seus dias imaginando o que teria do outro lado. Imaginava coisas malucas, desenhando-as em sua tela mental, depois apagava tudo, pois mesmo malucas, eram comuns demais, e do outro lado mesmo deveria haver coisas inimagináveis. Mas como seriam estas coisas inimagináveis? Isto lhe arrepiava a pele e aguçava mais a imaginação. Leela voltava a imaginar coisas inimagináveis. Mas novamente eram muito parecidas com as coisas do seu próprio mundo. Os passarinhos do outro lado eram linguas de fogo. Os gigantes eram pessoas ampliadas e pintadas de verde. Que cor seria uma cor inimaginável? Leela se pergunta. E assim seguia...
Uma vez por ano, descia uma espaçonave pelo buraco e vinha até sua cidade. Era dia de levar algumas pessoas pro outro lado do buraco. Num dia desses...
— Leve-me em sua espaçonave — disse Leela ao capitão da nave.
— Você está preparada? — perguntou o capitão.
— Sim, sim! Estou sim! — ela respondeu.
— Tem certeza!? — disse o capitão — Pra ir comigo e passar por aquele buraco, você precisa estar preparada pra deixar tudo aqui. Tudo que tem, tudo que conhece, tudo que gosta e também o que desgosta. Isto significa deixar seus pais, seus amigos, seus brinquedos, suas raivas, suas alegrias, suas idéias, suas imaginações sobre o que há do outro lado. Ir comigo pro outro lado é igual morrer. Você terá que deixar tudo aqui, até suas esperanças. Não posso te levar com expectativas de voltar. Se você disser que sim, que está preparada pra deixar tudo pra trás, eu levo você agora mesmo.
Leela havia imaginado aquele momento centenas de vezes, com replay. Era a realização de um sonho. Só que o preço estava muito alto. Ela amava seus pais, seus amigos, seu gato, seus passeios pelos bosques. Ela amava até a professora chata da escola e o sapato quase apertado que sua mãe insistia em faze-la usar. E se fosse ruim do lado de lá? E se o inimaginável não fosse nada do que ela imaginava?
— Não estou preparada ainda — Leela respondeu ao capitão da nave.
A nave partiu. Mas como sempre, voltava ano após ano. O capitão olhava ao redor, mas nunca mais voltou a ver Leela por perto. Ela estava se preparando. Tinha decidido que só voltaria a falar com o capitão no dia que estivesse pronta pra partir. Porém, os dias passavam, e Leela, ao invés de se sentir mais pronta pra abrir mão de tudo, sentia cada vez mais peso ao pensar que nunca mais veria, pegaria, lamberia e sentiria as coisas daquele mundo. Então, quando Leela completou 21 anos, ela tomou um decisão radical. Apesar de todo o pesar, apesar de não estar preparada, apesar de tudo, ela embarcaria na próxima nave.
— Leela, você por aqui hoje! — disse o capitão da nave.
— Sim, vim embarcar pro outro lado.
— Lembra do que te disse? Está preparada?
— Sim, lembro do que você falou e não estou preparada, mas vou mesmo assim.
O capitão sorriu, abriu um buraco no chão do mundo de Leela, e pediu que ela deixasse tudo que tinha ali.
— Nada deste mundo pode ser levado pro outro lado — disse o capitão da nave.
Leela foi deixando tudo ali, até ficar nua.
— Eu disse tudo, Leela, falta uma coisa ainda! — disse o capitão.
— Falta o quê? Deixei tudo pra trás, meus pais, amigos, gato, sorvete preferido, sonhos, expectativas. Estou completamente nua.
— Falta deixar você, Leela! — disse o capitão — Nada deste mundo pode ser levado pro outro lado. Você precisa deixar a Leela aqui também.
Leela levou um susto. Mas sua decisão estava tomada, ela iria pro outro lado mesmo que tivesse que deixar a si mesma. E foi isto que ela fez, despiu-se de si mesma e entrou na nave. O capitão fechou a porta e a viajem começou.
Conforme a nave se aproximava do buraco no céu, Leela podia se lembrar das milhões de expectativas que tinha sobre aquele momento, mas como havia deixado todas as expectativas no mundo dela, assistia a aproximação em paz. Quando a nave finalmente atravessou o buraco, Leela levou um susto. Parecia até que a nave estava voltando de ré. O mundo inimaginável era idêntico ao seu mundo, sem tirar nem por. A nave foi se aproximando do chão e a cidade do mundo inimaginável era idêntica a cidade de onde ela havia saído. Tão idêntica, que tinha até uma outra Leela esperando na fila, pra embarcar pro outro lado do buraco. O capitão pediu pra que a outra Leela se despisse de tudo, assim como pediu a ela, e assim que a outra Leela embarcou na nave, o capitão permitiu que Leela descesse no mundo novo.
— Este aqui é o mundo da felicidade, Leela. — disse o capitão — Duvido que você, mesmo com sua imaginação fértil, tenha sido capaz de imaginar algo tão diferente assim do seu outro mundo.
— Nunca! — respondeu Leela sorrindo e em profunda paz — Nunca seria capaz de imaginar a felicidade que estou vendo neste mundo.
— Pode desembarcar e aproveita-lo.
Leela desceu da nave, pegou a roupa da outra Leela, e voltou pra casa. Nunca mais se pré-ocupou com o inimaginável, o novo mundo ocupou todo seu tempo.
Uma vez por ano, descia uma espaçonave pelo buraco e vinha até sua cidade. Era dia de levar algumas pessoas pro outro lado do buraco. Num dia desses...
— Leve-me em sua espaçonave — disse Leela ao capitão da nave.
— Você está preparada? — perguntou o capitão.
— Sim, sim! Estou sim! — ela respondeu.
— Tem certeza!? — disse o capitão — Pra ir comigo e passar por aquele buraco, você precisa estar preparada pra deixar tudo aqui. Tudo que tem, tudo que conhece, tudo que gosta e também o que desgosta. Isto significa deixar seus pais, seus amigos, seus brinquedos, suas raivas, suas alegrias, suas idéias, suas imaginações sobre o que há do outro lado. Ir comigo pro outro lado é igual morrer. Você terá que deixar tudo aqui, até suas esperanças. Não posso te levar com expectativas de voltar. Se você disser que sim, que está preparada pra deixar tudo pra trás, eu levo você agora mesmo.
Leela havia imaginado aquele momento centenas de vezes, com replay. Era a realização de um sonho. Só que o preço estava muito alto. Ela amava seus pais, seus amigos, seu gato, seus passeios pelos bosques. Ela amava até a professora chata da escola e o sapato quase apertado que sua mãe insistia em faze-la usar. E se fosse ruim do lado de lá? E se o inimaginável não fosse nada do que ela imaginava?
— Não estou preparada ainda — Leela respondeu ao capitão da nave.
A nave partiu. Mas como sempre, voltava ano após ano. O capitão olhava ao redor, mas nunca mais voltou a ver Leela por perto. Ela estava se preparando. Tinha decidido que só voltaria a falar com o capitão no dia que estivesse pronta pra partir. Porém, os dias passavam, e Leela, ao invés de se sentir mais pronta pra abrir mão de tudo, sentia cada vez mais peso ao pensar que nunca mais veria, pegaria, lamberia e sentiria as coisas daquele mundo. Então, quando Leela completou 21 anos, ela tomou um decisão radical. Apesar de todo o pesar, apesar de não estar preparada, apesar de tudo, ela embarcaria na próxima nave.
— Leela, você por aqui hoje! — disse o capitão da nave.
— Sim, vim embarcar pro outro lado.
— Lembra do que te disse? Está preparada?
— Sim, lembro do que você falou e não estou preparada, mas vou mesmo assim.
O capitão sorriu, abriu um buraco no chão do mundo de Leela, e pediu que ela deixasse tudo que tinha ali.
— Nada deste mundo pode ser levado pro outro lado — disse o capitão da nave.
Leela foi deixando tudo ali, até ficar nua.
— Eu disse tudo, Leela, falta uma coisa ainda! — disse o capitão.
— Falta o quê? Deixei tudo pra trás, meus pais, amigos, gato, sorvete preferido, sonhos, expectativas. Estou completamente nua.
— Falta deixar você, Leela! — disse o capitão — Nada deste mundo pode ser levado pro outro lado. Você precisa deixar a Leela aqui também.
Leela levou um susto. Mas sua decisão estava tomada, ela iria pro outro lado mesmo que tivesse que deixar a si mesma. E foi isto que ela fez, despiu-se de si mesma e entrou na nave. O capitão fechou a porta e a viajem começou.
Conforme a nave se aproximava do buraco no céu, Leela podia se lembrar das milhões de expectativas que tinha sobre aquele momento, mas como havia deixado todas as expectativas no mundo dela, assistia a aproximação em paz. Quando a nave finalmente atravessou o buraco, Leela levou um susto. Parecia até que a nave estava voltando de ré. O mundo inimaginável era idêntico ao seu mundo, sem tirar nem por. A nave foi se aproximando do chão e a cidade do mundo inimaginável era idêntica a cidade de onde ela havia saído. Tão idêntica, que tinha até uma outra Leela esperando na fila, pra embarcar pro outro lado do buraco. O capitão pediu pra que a outra Leela se despisse de tudo, assim como pediu a ela, e assim que a outra Leela embarcou na nave, o capitão permitiu que Leela descesse no mundo novo.
— Este aqui é o mundo da felicidade, Leela. — disse o capitão — Duvido que você, mesmo com sua imaginação fértil, tenha sido capaz de imaginar algo tão diferente assim do seu outro mundo.
— Nunca! — respondeu Leela sorrindo e em profunda paz — Nunca seria capaz de imaginar a felicidade que estou vendo neste mundo.
— Pode desembarcar e aproveita-lo.
Leela desceu da nave, pegou a roupa da outra Leela, e voltou pra casa. Nunca mais se pré-ocupou com o inimaginável, o novo mundo ocupou todo seu tempo.
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*Marcelo Ferrari é escritor, filósofo e poeta.
Para saber mais sobre ele, e sobre seu trabalho, clique aqui.
2 comentários:
Legal essa historinha. O "nascer de novo" nessa historinha é tão evidente e simples que nos deixa até bobos... A nessecidade de ver tudo o que já temos e que já somos com um olhar de eterna novidade é realmente a chave para ser eternamente feliz. Eis que a velha Leela se torna sempre a nova Leela. E tudo se faz novo.
Como dizia St Agostinho: "Tarde Te amei, beleza antiga e tão nova. Eis que eu procurava fora, e aqui estavas dentro de Mim".
Muito bom, gostei.
Abraços!
Ops.: corrigindo... Necessidade... Rs. Foi mal.
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