15. É possível fazer uma comparação do ensinamento budista com o célebre exemplo da caverna de Platão?
Uma analogia é algo limitado, útil somente até determinado ponto. Na analogia da caverna, Platão imagina seres que estão ao fundo de uma caverna e interpretam o mundo atrávés das sombras que a luz externa projeta na parede. Nenhum deles jamais saiu de lá.
O mundo do samsara, o mundo das ilusões em que vivemos, é assim: um mundo de sombras que interpretamos e nas quais vemos relações. Lá fora existe uma luminosidade pura que permite que tudo surja por meio de sombras.
Mas a luminosidade não são as sombras e as sombras não são a luminosidade. No entanto, estão tão ligadas que, sem a luminosidade, as sombras não existem, e sabemos que há luminosidade porque há sombras.
A vacuidade, o Vazio (o não manifesto, o incondicionado, o além de características) é, nesta analogia, a luminosidade. As sombras, as nossas percepções, as palavras os símbolos com que tentamos entender a luminosidade, através das interpretações que fazemos das sombras.
Não admira que seja tão difícil duas pessoas se entenderem, quando um quer que surja a lógica através dos raciocínios que faz com palavras (semiótico) a respeito das sombras e dos relatos sobre estas relações, e o outro, por sua vez, deseja falar sobre a luminosidade, também usando símbolos criados através do estudo das sombras para explicar que a luminosidade está "além" de qualquer sombra.
No Zen, diríamos de imediato que: "As sombras e a luminosidade não são um e também não são dois". Ou seja, a luminosidade externa é não definível pelas sombras, as sombras,embora manifestação que só surja se existe luminosidade, estão num nível inferior de complexidade que não permite que, com elas, analisemos o nível superior. Assim como as pedras e sua ciência não esclarecem a biologia, como a fisiologia do cérebro não esclarece a consciência: podem, no máximo, dar uma sombra da manifestação mais complexa.
Se é útil este ensinamento baseado nas sombras? Com certeza, a maior parte dos ensinamentos budistas são assim. Deve-se falar no "além" disso? Com certeza, sob pena de nos recusarmos a virar e sair da caverna. Iluminação seria isto? De certa forma sim. Samsara (as sombras) e nirvana (fora da caverna) são o mesmo? Sim e não, os dois não são um, mas também não são dois, e os bodisatvas são os que retornam para dentro da caverna e falam sobre a luminosidade, porém não podem iluminar ninguém, podem apenas dizer:saia, saia, vire-se, isto aqui são só as sombras, você mesmo é sombra!
Porém, sem ver a luminosidade não é possível entender. Nessa analogia (limitada, lembre-se), iluminação é mergulhar na luminosidade. O mundo das sombras, assim, fica paupérrimo.
Nirvana é, vendo isto, livrar-se de todas as relações entre sombras, ficar sem "ventos" internos. Pode-se estar no Nirvana e não ser um bodisatva. Parinirvana é dissolver-se em pura luminosidade.
Assim sendo, com o vocabulário e as técnicas úteis dentro de um âmbito, não podemos entender o outro. É preciso sempre abandonar a caverna para, mergulhados na luminosidade, compreender que aquele mundo é inexprimível para o expectador da face de pedra interna.
16. De que adianta chegar à iluminação se, no final, tudo dá no mesmo?
Não, não dá no mesmo. Como onda, você está irremediavelmente obrigado a se manifestar. Se você se ilumina, pode escolher até mesmo não mais se manifestar, escapando da Roda. Sem a iluminação, você é apenas arrastado, sem escolhas.Aqui parece que estou dizendo que existe algo como alma, mas não é assim, é o movimento cármico que se extingue no iluminado.
17. De que adianta o individuo escapar desse mundo se o ponto final é ser absorvido no todo?
Se o indivíduo é ilusão, querer permanecer é a prisão. Escapar não é ser absorvido no todo, é descobrir-se o todo. Descobrir-se o todo é ver a face original, é a experiência religiosa mais profunda, a morte de si. Mesmo no Cristianismo, isso surge: veja Paulo, que diz "não sou mais eu quem vive, mas Cristo que vive em mim". São Francisco de Assis "é morrendo que nascemos para a vida eterna". No budismo: 'a experiência do nada é a maneira de engolir o universo'.
18. Jurar renunciar à busca da iluminação porque é impossível alcançá-la enquanto o processo seja uma meta consciente do eu: esse pensamento me tocou profundamente. Poderia falar mais a respeito?
No Zen dizemos que quando sentamos em iluminação já estamos iluminados. Se você sentar procurando por ela, não poderá encontrá-la, porque estará procurando algo para si mesmo e isso implica continuar agarrado ao ego. Ou seja, sentar-se sem nada mais querer é um ato iluminado.
19. O único caminho para alcançar a iluminação é através da meditação?
Não. Alguém pode se iluminar apenas ouvindo um ensinamento, por exemplo. Mas essa é apenas uma possibilidade teórica. Mesmo Buda praticou meditação por seis anos antes da iluminação. Os mais fantásticos mestres tiveram muito trabalho para chegar lá. Mesmo que você acumule muitas vidas de dedicação terá uma chance em milhões sem meditar. Agora pergunto: por que adiar uma prática tão preciosa sobre qualquer ponto de vista? É dura e difícil, mas é a essência do zen. Aliás, a palavra "zen" quer dizer "meditação".
20. Por que os iluminados continuam no mundo?
Para a mente iluminada, há ação neste mundo de fantasmagoria, não se abdica dele por ser não existente.
21. Se não existe nada para reencarnar, obviamente tudo se extingue após a morte. Sendo assim para que buscar a iluminação?
Nem tudo, o karma persiste, o que se extingue é o ilusório, a energia kármica prossegue se manifestando. Você busca a iluminação para acordar e escapar do sofrimento causado pelo fenômeno vida em que você está aprisionado.
22. Para se livrar do fenômeno 'vida' em que estamos aprisionados, não bastaria esperar a morte?
Sim, mas embora não haja identidade para sobreviver, novo fenômeno se origina deste karma não resolvido. E você pertence ao universo,do qual não pode escapar.Nesse sentido, jamais pode morrer ou desaparecer, está preso a se manifestar como fenômeno já que é uma onda kármica.
23. Como o carma pode funcionar para cada indivíduo, se a individualidade é apenas ilusão? A parte que me causa problema é imaginar que a individualidade é totalmente ilusória. Se o que o que o senhor diz é a verdade, parece que se anularia a noção de progresso: o universo daria sempre no mesmo. Para que ter consciência se, na cena final, na vitória final,vai-se compreender que o ego e a individualidade são sustentados pela desejo ardente de defender o 'eu'? O ser consciente chega a essa realização e a consciência, com esse valioso conhecimento e com vidas de experiência, se apaga?
Muito interessante a pergunta. Até porque é exatamente assim que o universo parece se comportar. Ele não parece ser infinito. Se o fosse, quando você saísse ao relento, à noite, o céu seria branco, reluzente como o sol, porque para qualquer ponto que você olhasse, veria uma estrela e, na infinitude, não haveria pontos sem luz.
Para o Budismo, os universos são cíclicos e múltiplos. Não se destinam ao surgimento de seres, simplesmente acontecem 'big bangs' e colapsos finais em que tudo desaparece, ou em entropia, ou em 'crunchs'. Mesmo assim, tais explicações não importam ao Budismo, que não tem como objetivo dar explicações científicas, mas visa à libertação. Obtida esta, o próprio Budismo deve ser abandonado, como um barco que serviu para atravessar um rio.
O carma tem repercussões nas ondas de manifestação individuais, que não são o mesmo 'eu', tal como a chama que acende uma vela não é a mesma chama. Mas, de outro ponto de vista é a mesma chama... Assim são as vidas, chamas que são passadas, sem individualidade, mas guardando suas características.
Os tempos universais têm progresso, mas ele não é contínuo e há retrocessos. Não tenho dificuldade em imaginar a onda de um criminoso nazista se manifestando em um cachorro sarnento em um país miserável por milênios, até que seu carma se esgote... Também basta colocar o pé na Alemanha para ver que os jovens alemães de hoje sofrem o carma que herdaram do passado de seu país. Temos o carma de nosso país, de nossa família, de nossa onda individual, de nosso planeta...
O Vazio a que pertencemos tem tudo. Nós é que nos perdemos nesta pequenas e limitadas manifestações individuais. Nada há para ser perdido. Nem para ser obtido. A iluminação é libertação desse eu aprisionado, limitado, sem conhecimento. Um universo cessa quando seus carmas se esgotam, quando a energia se equilibra sem distinções. Querer guardar algo, obter algo para um eu individual é a cegueira básica que impede a iluminação.
A iluminação já está aqui, agora, só não a vemos porque a ilusão do eu deseja obter sabedoria, poder, vitórias, conhecimentos, mergulhando-nos em um sonho sem fim. É por isso que despertar desse pesadelo é que faz de um homem um Buda. Buda, afinal, quer dizer, Desperto, Aquele que acordou.
24. A experiência mística (kenshô) é a iluminação?
Antigamente ela era tratada como tal. Contudo, ter uma experiência de kenshô (teofania, êxtase religioso) pode dar resultados apenas temporários, como uma lembrança espetacular, e não alterar realmente a vida do praticante. Portanto, tem todo o sentido um professor perguntar: 'muito bem, e daí? O que mudou realmente em suas atitudes?'. A prática não é ter uma experiência, é praticar continuamente.
25. O que é o Satori?
É uma experiência definitiva, revolucionária, um cair de céus e terra que muda profunda e permanentemente a pessoa. Distingue-se do kenshô por sua permanência e pela aptidão para ser recuperado a qualquer momento por quem o possui. É também chamado de iluminação, embora haja numerosos níveis de profundidade em sua qualidade.
26. O uso de drogas pode abrir caminho para a iluminação?
Mergulhar em ilusões provocadas pela alteração do funcionamento cerebral só pode tornar ainda mais difícil a liberação. Ela depende de imensa clareza, de limpeza dos processos mentais. As alucinações e alterações da percepção só nos distanciam da clareza, sem considerar os danos permanentes que podem ocorrer.
27. As atividades neste mundo de egoísmo não impedem o caminho espiritual? Como se iluminar sem ser um monge?
Todas as nossas atividades no mundo podem ser meios hábeis para a iluminação. Procure ler o Sutra de Vilamakirti, que era discípulo de Buda e grande comerciante; nenhum dos outros conseguia vencê-lo em sabedoria. A lição é de que não é a atividade em si o problema, mas a mente com que ela é feita. Você pode ser um vendedor e estar agindo com compaixão a todo o tempo, mesmo que isso não seja transparente para os que o vêem. O livro 'A doutrina zen da não mente' de D.T. Suzuki também lhe pode ser útil. Os atos são aparentemente os mesmos, a postura interna é que muda. Para algumas pessoas, isso aparece e elas perguntam: - o que há de diferente em você?
Como Vilamakirti demonstrou, não há necessidade alguma de sermos monges; esta é apenas uma forma mais fácil de prática, não necessariamente mais meritória, apenas um caminho para os que desejam ajudar outros.
28. A história de Mestre Sawaki, respondendo 'não' à pergunta se teria obtido a iluminação, não me parece ter um ensinamento budista evidente. O senhor pode esclarecer?
Essa história é muito bonita: se ele dissesse 'sim,' estaria consciente do satori, uma contradição; se estivesse consciente, não teria a 'não mente' e, portanto, não teria o satori. Quando ele disse não, o discípulo que estava à beira do entendimento repentinamente percebeu o significado da resposta, por isso chorou. Não chorou por se sentir magoado, mas por se emocionar com o entendimento da não mente (mushin) que o mestre tinha.
Fonte: www.dharmanet.com.br
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