domingo, setembro 25, 2016

Natureza, Vida e Arte


- Masaharu Taniguchi - 


A arte exprime o quê? Dizem alguns que a arte exprime a natureza (incluindo-se a vida). Já houve quem afirmasse que a arte consiste em observar atentamente a natureza e descrevê-la tal como ela é.Segundo esse ponto de vista, o que significaria "natureza"? Dizem que o escritor Doppo Kunikida, ao escrever o romance Mussashi-no, quis traduzir em palavras os ruídos da natureza dos campos de Mussashi, ouvindo-os atentamente. Teria ele tentado descrever os ruídos da natureza, do ponto de vista físico? Teria tentado descrever como o farfalhar das folhas é diferente dos demais ruídos? Teria tentado descrever como o ruído das folhas secas do outono, levadas pelo vento, difere do sussurro das folhas novas agitando-se ao sabor da brisa da primavera? Em suma, teria ele tentado descrever a diferença dos vários ruídos daqueles campos, simplesmente do ponto de vista físico?

O estudo científico da natureza consiste em observá-la atentamente e registrar os fatos constatados. A expressão artística da natureza consiste em observá-la atentamente e descrevê-la. Ambos partem da observação atenta à natureza, mas a diferença está na maneira de observar.

A observação científica é precisa, e o que se comprova através dela tem validade universal. Tratando-se, por exemplo, de um ruído, a observação científica conduz ao registro de uma realidade insípida, que pode ser traduzida em termos matemáticos como "x número de vibrações por segundo". Isso não acontece com observação do ponto de vita artístico. O que se apreende através dela não tem validade universal, como ocorre com a observação científica. Exemplifiquemos: se diversas pessoas efetuarem, na mesma hora e no mesmo lugar, uma observação científica do ruído do vento que sopra numa determinada área, todas constatarão o mesmo número de vibrações por segundo, o que significa que o fato constatado tem validade universal. Porém, se a observação for do ponto de vista artístico, o ruído do vento de um local soará diferente para cada pessoa, mesmo que seja ouvido no mesmo lugar e na mesma hora. Isto porque a sensibilidade varia de pessoa para pessoa.

Na observação científica da natureza, os cientistas usam os mesmos instrumentos de medição e estudo, descobrem os mesmos fatos e os registram. Daí, a validade universal de registros científicos. Já na observação da natureza sob o ponto de vista artístico, não se pode recorrer a nenhum instrumento de medição ou estudo. Por isso, em vez de se usar termos como "medir", que tem conotação de objetividade e precisão, utilizam-se termos como "contemplar", "sentir", etc., que têm conotação de subjetividade. E, referindo-se ao ato de exprimir o resultado da observação, diz-se "representar", em vez de "registrar".

A ciência não consegue registrar a essência dos seres e das coisas. Registra simplesmente os "dados" obtidos por meio de instrumentos ou aparelhos de medição. Assim, mudando-se a regulagem do instrumento ou do aparelho, obtêm-se dados diferentes. Portanto, o que a ciência registra não é a "essência", mas apenas o que se observa na inter-relação do "objeto observado" e "instrumento de observação". Diz-se que os registros científicos têm validade universal. Mas ela se restringe a registrar dados relativos, não chegando a captar a essência absoluta do ser ou da coisa.

O que é apreendido e descrito com base na observação do ponto de vista artístico não tem validade universal como ocorre com registros de observações científicas. Tomemos como exemplo a observação de uma flor. A arte não consiste em observar e estudar a flor como um conjunto formado por cálice, corola, androceu, gineceu e pólen. Mas a ciência consiste em observar e estudar a flor, partindo da ideia de que "a matéria existe". Assim, ela decompõe a flor para se chegar a elementos constituintes, desintegra cada elemento até chegar aos átomos, e finalmente obtém "dados" minuciosos relativos à estrutura dos átomos de oxigênio, hidrogênio, carbono, etc. nessa flor. Em suma, a ciência disseca a flor, desintegra-a, e descobre os átomos que a constituem. Descobre os átomos, e perdem de vista a "flor em si". No âmbito da ciência, não existe a "flor em si", mas unicamente frios "dados" acerca dos elementos que a constituem. Aí está o motivo por que a ciência, por si só, não consegue satisfazer a alma humana.

A ciência, usando instrumentos de medição e estudo, converte uma flor viva em frios "dados" científicos. Porém, não importa quais sejam os "dados" científicos da flor, ela (a flor) sempre nos atrai com algo que podemos chamar de "vibração da Vida". Isto é um fato, e não um "dado" obtido por meio de instrumento material de medição. Neste caso, o "instrumento de medição" é a nossa própria Vida. Um ser vivo vibra em contato com outro ser vivo, e é isso que produz a atração que a flor exerce em nós. Quando apreciamos a beleza de uma flor, não estamos pensando nela em termos de átomos que a constituem, mas sim vibrando em contato com a Vida, que dispôs os átomos em determinada ordem e fez surgir a "flor". Um ser vivo, ao descobrir a Vida num outro ser, vibra e se alegra. Essa vibração e alegria é que se traduzem em sentimento de "belo" ou "atração pela beleza". Uma flor colocada num vaso é bonita enquanto ainda tem Vida, e causa-nos admiração. Mas quando a Vida a abandona e ela fica murcha, deixamos de admirá-la. Nenhum ser vivo se sente atraído por algo que não tenha a forma e o aspecto sustentados pela Vida. Assim,a flor murcha do vaso é jogada fora, sendo substituída por uma nova que ainda se mantém viva.

Na observação científica, não só o instrumento de "medição de dados" é material, como também o objeto de medição é tratado como mera matéria, mesmo que ele seja um ser vivo. Também para estudar o ser humano vivo, a ciência obtém "dados" materiais a seu respeito, imaginando-o em estado imóvel. Já na observação do ponto de vista artístico, o instrumento de medição é o próprio homem, um ser vivo; e  objeto de medição também é um elemento vivo, uma manifestação da Vida. Estar em incessante movimento é característica inerente à Vida. Portanto, a Vida enquanto "observador" e a Vida enquanto "objeto de observação" tocam-se, estando ambos em movimento, o que significa que é incalculável a variedade de ângulo e duração do contato. Por essa razão, o que se apreende do ponto de vista artístico não tem validade universal, como no caso de constatações científicas.

Portanto, no campo da Arte, é natural que não se possa falar na "validade universal" daquilo que o artista apreendeu, visto que uma criação artística surge da observação de uma Vida por outra Vida, isto é, do contato de dois seres animados; assim sendo, o ponto de vista de uma pessoa não é igual a da outra. Por exemplo, ao ver o desfolhar de flores de cerejeira, uns se sentem melancólicos pensando na transitoriedade desta vida, enquanto que outros simplesmente apreciam a beleza das pétalas caindo suavemente ao sabor da brisa. Uma mesma flor é vista de modo diferente por diferentes pessoas, dependendo do modo de ser de cada um, bem como da maneira como ocorre o contato de sua Vida com a da flor. Considerando a flor mera matéria e analisando-a cientificamente, todos obtêm os mesmos dados. Mas, do ponto de vista da Arte, a qual consiste em apreender aquilo que resulta do contato de uma Vida com outra, a matéria não existe; em outras palavras, a matéria não é simples matéria.

A Ciência nos ensina que a matéria existe; mas, no mundo regido pela Vida, a matéria não existe. Na vida prática, mesmo vendo uma cerejeira em flor sem conhecermos essa teoria, apreendemos-lhe a Vida transcendendo a matéria. E, quando nos propomos a estudá-la cientificamente, observamo-la "fazendo de conta que ela é simples matéria", em vez de a observarmos como um ser dotado de Vida. Sob esse aspecto, podemos dizer que o mundo apreendido pela observação científica, embora pareça retratar a realidade com maior exatidão, na verdade não passa de um mundo irreal e ilusório; em outras palavras, é um mundo falso, surgido como resultado de se forçar a imaginar como estático aquilo que é essencialmente dinâmico.

Como se pode depreender do acima exposto, o mundo apreendido pela Ciência é um mundo ilusório e irreal; e, inversamente, o mundo apreendido pela Arte, que parece ilusório e irreal, é que é o mundo verdadeiro. Isto porque a Arte consiste em apreender a Vida tal como ela é e sentir o seu fluir. Mesmo quando o artista parece simplesmente copiar a figura de um objeto colocado à sua frente, ele não está vendo o objeto propriamente dito, mas sim procurando apreender "algo" essencial que esse objeto transmite. A forma material está manifestada apenas como representação ou símbolo desse "algo" essencial.

Na Arte, não importa saber, por exemplo, quais são os elementos materiais que compõem a flor de cerejeira. O artista procura apreender e exprimir a Vida que nela existe e que a faz apresentar-se sob aquela forma. O mesmo acontece no contato entre as pessoas. Ao lidarmos com uma pessoa viva, não a vemos apenas como uma criatura com rosto constituído de olhos, nariz, boca, etc., mas sim como um "ser dotado de personalidade". Os olhos, o nariz, a boca, etc., não passam de símbolos que representam esse ser.

Quando nossa Vida está em plena atividade, é como se não vivêssemos no plano material. Somente quando nossa Vida se estagna, isto é, quando imaginamos o ser humano num plano fixo e supomos a Vida presa dentro dese plano, é que sentimos a presença da matéria. Suponhamos dois amigos se encontrem casualmente após um longo tempo sem se verem. Eles se cumprimentam efusivamente, felizes com o encontro. O que ocorre, nesse momento, é o contato da Vida de um com a do outro, extrapolando o plano material. Suponhamos, agora, que esses mesmos amigos, após ficarem um diante do outro durante muito tempo, acabem ficando sem assunto para conversar, e comecem a sentir-se constrangidos. Quando isso ocorre, é como se a Vida deles ficasse estagnada, pois cada um vê o outro como uma figura dentro de um plano fixo, e passa a observá-lo como um ser material, analisando-lhes as feições e concluindo que "ele tem olhos engraçados, redondos como os de pombo", ou "ele tem nariz feio, largo e achatado", etc. A essa altura, aos olhos de um, as feições do outro deixam de ser símbolo de sua personalidade, para se converterem em mera matéria. Com base em fatos como esse, podemos dizer que "matéria é a Vida restringida a um plano fixo".

No auge do naturalismo, quando escritores e artistas plásticos preocupavam-se em dar caráter científico às suas produções e valorizavam a descrição exata de pessoas coisas e fatos, era comum observar o ser humano do ponto de vista material e descrever ou retratar as feições do personagem (ou modelos, no caso de pintura, escultura, etc.) com a máxima fidelidade. Creio que hoje em dia nenhum escritor ou artista faz isso.

Nossa essência é a Vida; portanto, essencialmente, todos vivemos unicamente no "mundo regido pela Vida". Porém, sob o aspecto fenomênico, o nosso "eu carnal", manifestado como símbolo de nossa essência espiritual, vive num meio constituído pelo agrupamento de outros seres, que também são símbolos de sua respectiva essência espiritual. Pode-se, pois, dizer, que somos a Vida habitando o mundo regido pela Vida, e também somos "símbolos" habitando o mundo dos símbolos. A Seicho-No-Ie prega que a matéria é sombra da mente. O termo "sombra", no caso", tem a conotação de "símbolo". Visto que o estado físico simboliza o estado mental, mudando-se a atitude mental, é fácil mudar também o estado de saúde do corpo.

A Ciência procura apreender a Vida, imaginando-a num plano fixo. Mas a Arte visa captar a Vida em seu incessante fluir. Contudo, mesmo que se consiga captar a Vida em seu incessante fluir, não se consegue mostrá-la, tal como ela é, num papel, numa tela, etc. Se se tentar transpor no papel o próprio fluir vigoroso da Vida, o papel se rasgará, e se se tentar transpô-lo no gesso, este se fragmentará. Portanto, em uma obra de arte, é preciso representá-lo de forma estática. E para evitar que a obra se torne fria e insípida como um registro científico, o artista, ao tentar exprimir num plano fixo o fluir da Vida que ele conseguiu apreender, procura usar uma expressão em que esse fluir se transmita às pessoas sob alguma forma simbólica. Em última análise, todo artista, ao procurar exprimir no papel, na tela, etc., o "fluir da Vida que a própria Vida captou", tem de recorrer a alguma forma simbólica.

Será que a teoria aplica-se também a desenhos de qualquer coisa aparentemente inanimada como, por exemplo, casa, móveis, etc.? Em outras palavras, será que o artista, ao retratar um edifício, um navio ou outro objeto qualquer (que aparentemente não passam de matéria sem vida), apreende e exprime o fluir da Vida? O artista que pinta um quadro, naturalmente é um ser dotado de Vida; mas será que há Vida, por exemplo, nos traços do edifício que ele apreende para pintar? A uma análise superficial, parece que os traços de um edifício não tem vida. Mas, pensando bem, esses traços foram criados por um arquiteto, que é um ser dotado de Vida. Devemos atentar para o fato de que esses traços não são materiais, pois a matéria em si não tem traços. Matéria é constituída de átomos, e o átomo não tem traços; o átomo é constituído de elétrons, nêutrons e prótons, e estes não têm traços. Portanto, é preciso entender que, se há traços formando uma figura – seja esta qual for –, isso significa que a Vida serviu-se de partículas materiais originariamente sem traços, para criar uma forma como "símbolo de sua auto-expressão".

Talvez algumas pessoas digam: "Está bem. Admitamos que os traços de uma obra arquitetônica, na época de sua construção, sejam a manifestação da Vida de seu autor. Dir-se-ia que essa obra simboliza a Vida do arquiteto que a construiu. Mas quando essa construção ficar velha e desgastada e não mais tiver as feições originais, seus traços não deixarão de simbolizar a Vida do arquiteto? Não ficarão tão somente os rastros do tempo, as marcas da erosão provocada pela chuva e pelo vento?". Eu respondo: aparentemente, sim. Porém, se um artista pintar numa tela essa velha construção, seus traços terão Vida. Por quê? Porque esses traços não são da matéria, mas sim traços criados pela Vida. Assim, à medida que uma construção arquitetônica vai sofrendo os efeitos da chuva, vento, etc., seus traços originais, criados pelo arquiteto, passam a adquirir a beleza de coisa antiga, uma beleza sóbria e elegante. De onde vem essa beleza? Ela não é algo que possa ser captado por instrumentos de medição científica, pois não pertence ao mundo da matéria. Ela provém da Vida eterna da Natureza.

Assim sendo, podemos dizer que, embora o nosso corpo habite o mundo material, o nosso ser vive num mundo que transcende a matéria. Portanto, em última análise, vivemos no mundo regido pela Vida, no mundo onde tudo é expressão da Vida. Na verdade, não caminhamos sobre o solo material, mas sim sobre o solo regido pela Vida. Em tudo que vemos ou ouvimos, apreendemos a Vida, transcendendo a matéria. Vendo uma obra de arte ou ouvindo uma música, apreendemos a vibração da Vida de um irmão nosso. Assim, a literatura baseada na filosofia da Seicho-No-Ie caracteriza-se por apreender a Essência dos seres e das coisas e exprimi-las através de símbolos. Foi com essa atitude mental que eu me propus a escrever os livros da Seicho-No-Ie.


Do livro: "A Verdade da Vida, vol. 32" , Introdução.

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