1. Falar em pessoas iluminadas e não iluminadas não seria uma visão dualista?
Sim, é uma visão dualista. Costumamos dizer, no Zen, que todos já estão iluminados, somente não o percebem. Mas temos que ter cuidado com estes paradoxos do pensamento no Zen. A mente intelectual não pode alcançar o Zen. Usamos as palavras porque não há outra maneira, mas sempre haverá enganos e armadilhas no discurso. É preciso ir além, senão ficaremos como teólogos discutindo os detalhes. A compreensão é perfeita sem palavras, como quando entendemos uma anedota. Se for explicada , perde a graça.
2. Mas existe uma diferença entre os dois estados de consciência (iluminação e não-iluminação)?
Existe. Um discípulo perguntou a um mestre:
- Qual a diferença quando eu me queimo e o senhor se queima?
- Nenhuma diferença, é a mesma coisa, mas eu sei disto e você não.
3. Por que não acordo?
Porque a prática é fraca ou insuficiente. Muito dificilmente se chega lá apenas pensando, estudando, ou mesmo acumulando poderes e sabedorias. Chega-se por meio da meditação correta. Nada mais do que isto.
4. Sei bem que a personalidade é algo montada, artificial e transitória. Sinto-me tendente a fazer a defesa desta personalidade barulhenta e inconveniente. Quero saber como posso aprender apreciar e entender o medo que me resta.
Penso que esse medo é um belo instrumento. Deve-se e mergulhar nele. É preciso meditar e morrer, morrer sinceramente, perder tudo completamente, deixar extinguir toda essa ilusão de separação, toda essa ilusão de um eu construído, que não tem como sobreviver a cada dia e morre a todo instante. Quero dizer com isto que você precisa sentar em meditação e deixar realmente que este medo mais do que se apresente, que ele se impregne em você até que você seja apenas medo e então se pergunte: "quem é este que tem medo? onde ele está?".
5. Há uma história no livro do Rev. Ricardo Gonçalves (Textos Budistas e Zen-Budistas) "Hakuin e a Jovem Iluminada", em cujo final consta: "A Iluminação do Zen está longe de matar os sentimentos inerentes ao ser humano". O senhor poderia comentar esta frase?
Vou contar outra história e penso que tudo se esclarecerá:
Um mestre recebeu uma carta que comunicava a morte de um parente e começou a chorar sentado em uma pedra. Chocado, um aluno aproximou-se e disse:
- O senhor ensinou-nos sobre a impermanência, sobre o Dharma, sobre a clara percepção das coisas e agora está chorando por causa de uma morte?
O mestre parou de chorar, olhou para ele, e disse:
- Seu idiota! Eu estou chorando porque eu quero! E voltando a baixar a cabeça, retornou a soluçar tristemente.
6. Se nós já temos a iluminação, apenas não enxergamos as coisas corretamente, qual o sentido de nossa busca?
Você já tem em potência, mas não a realizou. Para realizar, precisa enxergar.
7. Como é a conduta dos mestres?
Melhor que falar sobre a conduta dos mestres, é explicar sobre os passos do caminho: primeiramente, a pessoa percebe as questões de entendimento, a vacuidade, a interdependência a ilusão da individualidade e assim vai progredindo em um caminho que, obrigatoriamente, engloba uma conduta ética que é consequência lógica desse entendimento.
É comum então a aparência de uma virtude muito grande, uma aura de santidade. Quando este estágio é superado, com a iluminação real, a santidade e a virtude são deixadas de lado. Na realidade, o próprio Budismo será deixado de lado. Homens iluminados podem ter uma conduta incompreensível, a chamada louca sabedoria.
8. A transmissão mente a mente é a única e verdadeira forma de compreender o Dharma?
Em absoluto. Basta ver os numerosos métodos e escolas existentes. Porém, no Zen (e outras linhas Mahayana), a transmissão pessoal é considerada um método poderoso. A iluminação, sem esse auxílio, é vista como uma extrema raridade dentro das escolas Zen.
9. É possível julgar as ações de um Mestre iluminado?
Existe, em geral, uma crença de que é possível discernir com precisão o que é certo e o que é errado. No Zen, acredita-se que essa capacidade, por parte de um indivíduo não iluminado, é relativa, visto estar contaminada pelos condicionamentos gerais que todos carregam.
Até mesmo o método de julgamento ensinado no sutra teria uma efetividade relativa, se empregado por um ser imperfeito em seus julgamentos.
Trata-se da crença de que as regras são suficientes para indicar o caminho da virtude. Do ponto de vista do zen (e, creio, do mahayana em geral), esse é um bom caminho, mas limitado a um determinado ponto, em que a fronteira entre o certo e errado começa a ficar embaçada. A partir de certo estágio, somente uma compreensão iluminada pode discernir a melhor ação em uma determinada circunstância. As regras tornam-se o que são: letras no papel. Em um nível absoluto, não pode haver distinções baseadas em regras ou leis.
É um problema filosófico não somente no budismo: para julgar os atos do Deus cristão, dizem estes que a mente humana seria incapaz. É, em síntese, o mesmo caso: a mente não iluminada não detém capacidade para apreender e julgar os atos da iluminação. Do contrário, o mestre zen, ao dar uma bastonada no aluno, não passaria de um ser violento. É um exemplo bem primário, sei, mas o utilizo porque fácil de decodificar.
Basta aumentar o nível de complexidade, para que o julgamento se torne obscuro e impossível para o praticante: ele não tem meios mentais para julgar os atos de um mestre, que podem estar muito à frente de seu julgamento no tempo, e visar a coisas incompreensíveis à mente comum.
10. O Buddha não disse que todos os seres podem e vão alcançar a Iluminação, independentemente de qualquer fator?
Até mesmo a existência dos seres é uma delusão. A crença em um samsara eterno é produto do pensamento de que os carmas não podem se esgotar. Não é verdade, visto que há surgimento e cessação de todos os movimentos, já que que eles tendem a se manifestar e se compensar. Também ajuda pensarmos em termos matemáticos: "dado tempo suficiente, todos os eventos possíveis sucederão". E tempo é o que não falta.
A afirmação que você questionou surge da crença que:
1) Existem seres individuais (que permanecem e se libertam ou não no tempo);
2) Esses seres são separados e têm algo permanente (que os individualiza e portanto pode 'não se salvar');
3) O samsara é permanente e eterno (dentro de um ciclo sim, mas o que é eternidade?);
4) Há seres privilegiados que se libertam (de novo noção de individualidade separada).
Estes pontos contrariam aquilo que é aceito no budismo mahayana. Basta ver o voto do bodisatva: "Mesmo que os seres sejam inumeráveis eu faço o voto de salva-los todos", repetido sempre nos centros zen.
11. Existem exemplos de pessoas que fizeram o caminho de esquecer de si mesmas e que são felizes assim?
O caminho do asceta leva à virtude, não à iluminação. Nosso objetivo não é a santidade, mas a iluminação. Isso é que é felicidade plena.
12. Uns meses atrás, coloquei um alimentador para colibris em frente da janela da sala. Sentado na sala, vejo quando um vem, bebe e vai; cada um é uma pequena maravilha de penas verdes e azuis iridescentes, quando voa pairando no ar, bebendo... Fico encantado e, às vezes - às vezes! - durante uma longa fração de segundo - suponho - pois nao sei - o mundo pára em beleza e tudo tem um sentido que não é meu. Por que esses momentos de abertura não duram? O que representam eles na caminhada para a iluminação?
Penso que representam muito. São a demonstração de que você tem capacidade para se iluminar. Através da meditação, você começa a desenvolver a capacidade de chamar esse maravilhamento quando deseja, cada vez mais fortemente. Chamamos a isso de samadhi, concentração plena no momento. Eles não duram porque surgem novos pensamentos que, invasivos, nos tiram do presente e nos levam a considerações, passado ou futuro. Para fazer durar, você precisará estar plenamente naquele agora. Na meditação, você aprenderá a ficar assim cada vez mais tempo. Depois, por longos minutos. Pode ser tão maravilhoso que cria uma armadilha: um estado tão feliz que queremos ficar nele, mas ele ainda não é iluminação, é "maravilhamento". Será preciso ir além disso. Mais profundamente que essa plenitude de felicidade por estar "aqui, agora", livre de todo o carma acumulado, dissolvido na experiência tal como ela é.
13. Como o senhor avalia a frase de um místico cristão: 'fique sem movimento e conheça a Deus'?
A mim parece um bom resumo do Zen. (1) Ficar ser movimento mental é destruir a mente conceitual que, aliás, é muito forte em geral em todas as pessoas inteligentes.(2) Esta abstenção de movimento é obtida através da prática da meditação. Essa experiência lhe fará muita diferença.
14. Católicos, protestantes, muçulmanos, etc. também podem alcançar a iluminação?
Impossível, nesse contexto de palavras, não classificar e distinguir... não conversaremos sem usar a mente discriminativa até mesmo quando usamos os termos que designam as tradições. Sim, o Dharma, para nós budistas, é o ensinamento supremo. Mas daí acreditar que outras tradições não possam alcançar a iluminação através do reconhecimento direto, vai uma distância. Elas podem. O Zen não detém o monopólio da iluminação, nem o budismo o detém. O zen está focado em atingir a iluminação, descarta o resto. Algumas formas budistas nem têm como objetivo alcançá-la nesta vida porque o creem difícil agora, e pretendem, por exemplo, adiá-la para depois de estar em condições melhores. Dessa forma o zen considera que detém uma metodologia de prática efetiva e crê na possibilidade de iluminação aqui, agora.
Fonte: www.dharmanet.com.br
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